As terras de toda a extensão Oeste do Estado de São Paulo, á margem
esquerda do rio Tietê eram chamadas de terras devolutas, vale dizer que eram
desocupadas (tecnicamente, o termo significa "adquirido por
devolução", mas por aqui eram terras ocupadas pelos índios e que o governo
do Brasil considerava de sua propriedade). Essas terras todas ficavam de
propriedade de quem as conseguia legalmente - por doação - do governo e
geralmente por poder político; por jogos jurídicos ou transferências de títulos
de propriedade; pela posse por residir na terra por tempo determinado -
usucapião; ou pela força: assassinato dos habitantes e entraves jurídicos
através do usucapião. Tinha grande importância para a propriedade das terras a
figura do grileiro, isto é, a pessoa que procura (ainda hoje) apropriar-se de
terra alheia através de jogos jurídicos: falsas escrituras de propriedade,
compra de títulos cartorários, produção de leis particularizantes em detrimento
da coletividade ou de legítimos donos, falsificação de documentos etc.
Inicialmente, tudo girava em tomo da incipiente estação da NOB. Um dos
primeiros habitantes do lugar foi Antenor Barros, o citado depoente histórico:
Em princípios de 1.908, vim com meu irmão João Vasconcelos Barros e uma turma
de operários trabalhar na construção da linha Noroeste do Brasil, como
administrador da firma empreiteira Rodrigues & Cláudio. Comecei meus
serviços na Estação de Anhangai, no lugar denominado "Canal do
Inferno", no rio Tietê. Além do primeiro hotel, já citado como de
propriedade (arrendamento) de Francisco e Francisca Pecoraro, temos testemunhas
do Dr. Roberto Franco Atense, neto de Vicente Franco Ribeiro, sobre o primeiro
armazém: Quando já instalada a estação, Vicente Franco abriu um armazém, o
primeiro e o único na época, onde vendia, trazido de Bauru, gêneros que só se
encontravam em cidades maiores como açúcar, sal. querosene, carne seca.
farinha, fósforo, velas etc.
As terras daqui pertenciam ao tempo da chegada dos trilhos a Augusto
Elisio de Castro Fonseca, que assinou com sua esposa, Maria Marques de Castro
Fonseca, as escrituras da venda das glebas. Seu procurador para a venda das
terras inicialmente foi Manuel B. Cruz. Este residia em Penápolis e colaborava
com todos, dando guarida aos que compravam as primeiras propriedades.
Havia três grandes fazendas que abrangiam as comarcas de Araçatuba.
Guararapes, Valparaíso e Andradina instaladas após 1.920: Baguaçu, Jangada
e Aguapeí. Esta
última foi palco da tremendas lutas para que o patrimônio de Araçatuba
chegasse a realidade.
A pequena povoação em si, em 1.909, foi se alastrando muito timidamente,
centrada na precária estação ferroviária, com pouquíssimas famílias e habitada
principalmente por operários da NOB, por representantes raros dos vendedores de
terras, por donos dos primeiros estabelecimentos comerciais, por pessoas
ligadas aos trabalhos de contatos com os índios, por medidores de
terras, e por raríssimos índios que se aculturavam.
Em 02/12/1.910, a Câmara legislativa do Estado de São Paulo aprovou o
projeto de lei n° 47. que criava o município de Penápolis, mas em 15/09/1.913
aprovou o parecer nº.38, que contestava o tamanho das terras aprovado para
Penápolis; nesse parecer, lemos o seguinte: Considerando por outro lado que o
evoluir progressivo e constante de toda a região cortada pela estrada de ferro
Noroeste não tem tido soluções de continuidade..." E, em 01/12/1,913, a
mesma Assembléia Legislativa de São Paulo aprovava um substitutivo ao projeto
nº. 47, em que consta A lavoura de café tem tido incremento, desenvolvendo-se
de um modo espantoso por toda a margem dessa estrada de ferro. Aquela cultura
acha-se distribuída por muitíssimas fazendas, contando-se por milhões os pés de
café que ali brotam do solo. como que por encanto.
Vê-se a incoerência: em setembro de 1.913, a região agricola que incluía
Araçatuba "não tem tido solução de continuidade" e em dezembro do
mesmo ano a cultura cafeeira se desenvolve de "modo espantoso" Esse
desenvolvimento que se alternava ao sabor dos desejos políticos estava sendo
construído com as vendas de terras em 1.909 e 1.910 e que fariam os milhões de
pés de cafeeiros três anos depois.
Em 1.904, foi criada a comarca de São José do Rio Preto, la foram
inscritas as primeiras divisões de terras desta região Em 1.910, com a criação
da comarca de Bauru, foram feitas lá as divisões da fazenda Goaporanga, e da
fazenda Aguapei poucos anos depois. A comarca de Araçatuba, criada em 1.922,
recebeu então, todos os autos da divisão jurídica e a indicação das
propriedades da fazenda Aguapei Mas foi só em 1.927 que tais divisões foram
reconhecidas, após muitas lutas e mortes, como se verá.
O panorama que se pode traçar de Araçatuba nos anos imediatamente
seguintes ao estabelecimento da estação da NOB é o de um patrimônio com
aproximadamente 500 habitantes, em casas de madeira sobre datas formando a
primeira rua do lugarejo, logo após a estação ferroviária, no que hoje é a rua
dos Fundadores.
Poucos animais de tração deveria haver Surgiam as primeiras plantações
de legumes, frutas e verduras nos fundos das casas, ailuminação era a vela e
muito raramente com querosene; usavam roupas grossas, apesar do calor e das
chuvas; havia trabalho e nenhum lazer para as pessoas que labutavam na
ferrovia. Vicente Franco com seu armazém e Francisco Pecoraro com seu hotel
recebiam os muito raros representantes dos proprietários de terras e dos
vendedores de terras, como por exemplo, Jacob Floriano. Corriam como rastilho
de pólvora as notícias das grilagens de terras, como assunto emocionante para
as noites de escuridão e silêncio, só quebrado por barulho das matas, por
gritos em meio ao fugaz amor dos solitários habitantes.
A derrubada da selva prosseguia, agora em outras direções que não só a
dos trilhos. Ai é que se encontravam índios com o choque cultural resultando em
estranheza, medo, poucas boas surpresas de amizades, e, contrariamente, mortes
ou ferimentos: poucos brancos morreram, mas quantos índios?
As doenças infestavam o lugar Em Orentino Martins, encontramos o
seguinte Além dos índios e das feras, os primeiros povoadores desta região
defrontavam-se com inúmeras doenças, muitas das gravíssimas para a época. A
malária era o flagelo; a leishmaniose cutânea, conhecida por 'úlcera de Bauru'
ou ferida brava', de origem egípcia, também chamada botão do Oriente', fazia
muitas vitimas. E havia a febre tifóide, a gastro-entérica, a hepatite, a
'doença de Chagas', o tétano etc. A apendicite, conhecida como 'nó nas
tripas", era fatal. Para desatar o 'nó', davam aos doentes, por via oral,
bagos de chumbo, o que apressava o desenlace. Abundavam também os pernilongos,
transmissores da maleita, os 'borrachudos', e o barbeiro" (MARTINS, 1.988:
83).
Pode-se imaginar, nesse panorama mais sombria do que corriqueiro, o
quanto de alegria deveria haver com a chegada da locomotiva, trazendo pessoas,
trabalhadores, bens transportados e prenúncios de novas perspectivas.
As famílias que aqui se instalaram em 1.909 e 1.910, em pequeníssimo
número, nunca eram de situação social melhor Estas, quando os maridos
precisavam vir a Araçatuba, mantinham as esposas e filhas e filhos menores
hospedados nas casas de melhor porte de Penápolis; por exemplo, dependendo do
visitante, na residência do Coronel Bento da Cruz.
Em 1.910, os agrimensores Cristiano Olsen e Adolpho Hecht fizeram a
demarcação de traçado que determinaria as ruas da Vila de Penápolis; entre as
dezoito ou dezenove ruas previstas, constava a rua Araçatuba. É o
reconhecimento histórico do patrimônio vizinho que começara a nascer, com a
estação da NOB, em fins de 1.908 Essa Rua Araçatuba, hoje, é a rua central de
Penápolis chamada Siqueira Campos.
Na época, eram travadas muitas e renhidas batalhas jurídicas pela posse
das enormes fazendas, como a Aguapei, retalhadas pelos interessados através da
grilagens, usucapião, invasões e outros meios ilícitos tornados
"lícitos" por meio de politicagens, compra de autoridades, trocas de
favores entre grandes famílias, ou casamento de interesse. Houve muitos
acontecimentos criminosos, às vezes seguidos de mortes, entre os que se
julgavam proprietários de glebas e que recebiam a visita de oficiais de justiça
com documentos desdizendo a propriedade que tinham como pacifica. Muitas vezes
a justiça fez-se acompanhar de força policial em diligências para fazer cumprir
os mandatos. Fora da letra fria dos documentos de cartório que consultamos,
vêm-nos à lembrança as belas páginas do romance Terra no Sangue, de autoria de
Maurício do Valle Aguiar (membro da Academia Araçatubense de Letras); ali estão
algumas narrativas literárias de lutas pela terra, semelhantes às que se deram
aqui, na região araçatubense, só que, infelizmente, estas foram verdadeiras.
Como indicamos antes, três nomes despontam
nesse começo histórico de Araçatuba:
Vicente Franco Ribeiro,
Manuel Bento da Cruz e Augusto Elísio de Castro
Fonseca.
Vicente Franco Ribeiro nasceu em 1.863 e
faleceu em 1.948. Era filho de tradicional família de pecuaristas de Montes Claros,
no Estado de Minas Gerais. De seuneto, Dr.
Roberto Franco Atense recebemos
uma série de informações biográficas deseu famoso avô.
Vicente teve uma desilusão amorosa em Minas,
vendeu suas propriedades emMontes Claros e veio para nossa região.
Chefiou uma turma da NOB
no assentamentode trilhos bem no trecho que chegava
a futura estação de Araçatuba.
Abrindo matas, os ferroviários deixaram açúcar, rumo e outras
mercadorias para abrandar os índios Caingangues. O próprio comboio que ia
acompanhando os trilhos, formado por gôndolas, levava armamentos, ferramentas,
alimentação e barracas para serem montadas nas clareiras de mato que iam
abrindo, durante a permanência no trecho a ser desbravado.
Depois de estabelecido o vagão fixo que passou a ser a estação, Vicente
construiu o armazém já referido. Também trabalhou como vendedor de terras que
se desmembravam das grandes fazendas da propriedade de Eliseo Fonseca; Vicente
Franco funcionou como representante do grande proprietário e certamente esteve
dentro dos acontecimentos terríveis que esboçamos sobre as lutas jurídicas pela
posse da terra.
(BODSTEIN, Odete Costa; PINHEIRO, Célio."Histórias de Araçatuba", 1997; p53-58)